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Bom dia pra quem?

Depois da morte da minha filha, de tempos em tempos me vem as lembranças do dia do acontecido com muita clareza, e elas são acionadas por coisas do cotidiano, ouvir a sirene de ambulância, o toque de telefone por ramal, ter que entrar em um hospital e até uma simples tirinha sobre médicos e pacientes.

Vendo algumas postagens nas redes sociais, me deparei com uma tirinha mostrando um paciente no hospital e o médico ao cumprimentá-lo com um sonoro e entusiasmado bom dia, o paciente sem paciência perguntar ao médico:

Bom dia pra quem? 

Esta ilustração era para mostrar de como as vezes, só de estar em certos ambientes, já há uma boa probabilidade de não se estar tendo um bom dia, mas as outras pessoas não sabem, só cumprem o papel de educadamente, saldar o outro, é o mínimo, mas quando se está com dor, algumas falas aborrecem ao invés de acolher e por isso que este desenho me vez voltar até o dia 14/03/2017.

Até aquele dia, eu achava que os piores dias que havia vivido foram o de ter minha filha em uma cama de hospital, entre a vida e a morte, porém naquela madrugada depois de receber a notícia da morte, friamente dada pela médica plantonista e pela enfermeira, ainda teve muitos desdobramentos que ajudaram a marcar ainda mais negativamente, aquele dia.

Saí, junto com o meu marido, para resolver os trâmites burocráticos de registrar o óbito e as demais coisas que se seguem após uma morte, fomos até o serviço funerário da Cidade de São Paulo, porém, chegando lá, descobrimos que a médica havia preenchido errado o documento que atestava a morte e foi preciso voltar ao hospital para pedir que fizessem um novo documento.  

Pegamos um trânsito imenso do centro de São Paulo até a Zona Leste no horário de pico, nós dois arrasados, entramos novamente naquele hospital que juramos nunca mais voltar, bem na hora da troca de plantão e fomos jogados de um lado para outro, ninguém sabia de nada, ninguém resolvia nada, pegaram o documento e levaram para ser preenchido novamente.

Ficar naquele local estava sendo torturante, os minutos iam passando e nada de nos entregar o documento e já sem paciência, pedimos para subir até a UTI para buscar e quando estávamos no elevador, entrou um homem todo sorridente e nos cumprimentou com um “Bom dia”. 

Naquele momento me deu vontade de dizer:

“Bom dia pra quem? Hoje está sendo o pior dia da minha vida, acabei de perder a minha filha nesta merda de  hospital e você ainda me vem com bom dia? 

Simplesmente respondi com uma voz embargada, “bom dia”. 

Ele desceu no segundo andar, ao sair comentei com o Joseval:

Mal sabe ele que este está sendo o pior dia da minha vida.

Fomos ao sétimo andar, mas não conseguimos resolver a questão das assinaturas no formulário que atesta o óbito, pretendíamos cremar o corpo e há normas para esse procedimento e pediram para aguardarmos mais alguns minutos.

O tempo foi passando, cada ligação que recebia me afirmava que a Marina havia morrido, que não era um pesadelo, apesar de acreditar que era, e ao mesmo tempo eu estava ali naquele local fazendo uma das coisas mais difíceis da minha vida, fui ficando aflita e então perdemos novamente a paciência com o descaso e nos deram 30 minutos para resolver a situação. 

E depois de 30 minutos, veio um rapaz todo gentil informado que o diretor do hospital ia nos receber e nos explicar o que estava ocorrendo. Não entendemos nada, e fomos conduzidos até o segundo andar. 

Nos levaram para  uma sala onde lá estava o homem do elevador que havia nos desejado um “bom dia”, também estavam presentes o médico responsável pela UTI, que mal falava com a gente nos dias que estava no plantão e a chefe da enfermagem, que nunca havíamos visto antes.

Sentamos em frente ao diretor que começou a explicar o motivo de não poder assinar o laudo atestando o óbito, à sua frente estava o prontuário de nossa filha.  

Primeiro nos disse que lamentava pela morte e que não conseguia imaginar a dor que estávamos sentindo, que fizeram tudo que era possível para salvá-la que ele acompanhou o caso, mas que não podia assinar, pois como havia sido uma tentativa de suicídio e que ela havia sido transferida de um outro serviço onde havia sido negligenciada, não poderia e não permitiria que nenhum médico, além do Responsável pela UTI assinasse o laudo e que o corpo deveria seguir para o IML. 

Pediu desculpas, falou da reestruturação que o hospital estava passando.

Não sei de onde consegui forças, eu olhei para o médico ali na minha frente, para mim, mais um burocrata, frio e calculista e desatei a falar que minha filha havia morrido, pois essa é a sina de todo ser vivo, nascer e um dia morrer, mas que ela tinha uma doença, que infelizmente ela não teve o tempo necessário para que fosse controlada.  

Disse que esperava mais dos médicos mas sabia que eles não são pessoas que curam doenças, médicos são pessoas que cuidam de pessoas, médicos precisam gostar de gente e alí naquele lugar não vi sequer um, com essa função e que ele na restruturação do lugar, devia contratar gente que gostasse de gente.

Falei do descaso deles, de boa parte dos enfermeiros, dos absurdos que vi nos 18 dias que frequentei aquele lugar, das conversas que ouvia e que tinha com outros acompanhantes, da falta de humanidade em um lugar onde deveria ter acolhimento, em todos os setores.

Contei de como me senti ao chegar na UTI desmontada para ser pintada e apenas minha filha no leito, com lonas pretas ao redor para impedir que a poeira chegasse até ela, como se ela fosse um móvel, um objeto daquele lugar e que ao reclamar e achar aquilo surreal, ainda fui maltratada pelo enfermeiro.

Mas também lembrei dos poucos auxiliares e técnicos de enfermagem que eram empáticos, da faxineira que me contava mais sobre a evolução da minha filha do que os médicos, e do porteiro que nos fazia rir na hora da visita.

Cheguei a falar da questão financeira, médicos, hospitais de planos de saúde visam lucros e se as vidas alí estão dando prejuizos, melhor descartar e era assim que sentia com relação a tudo aquilo.

O que falei foram palavras jogadas ao vento, deviam estar acostumados com familiares revoltados com seus atendimentos, lidar com a morte em um hospital geral é algo corriqueiro. Inclusive o que me chamava a atenção todos os dias, eram os carros funerários que sempre estavam na porta do hospital.

Eu estava com muita raiva daquele lugar e das pessoas que não cuidaram da minha filha direito, principalmente do médico responsável pela UTI, que extubou minha filha sem um exame para atestar se seus pulmões estavam bem, agravando o estado dela.

Enfim, foi apenas mais um desabor naquele dia horrível e tudo que se seguiu, que foram, delegacia onde tivemos que contar toda a história e que chamou a atenção do escrivão e do delegado pelo descaso, negligência e imperícia dos profissionais da saúde, depois IML, velório, enterro, essas coisas que uma mãe nunca quer ter que fazer por um filho, foi se configurando como o pior dia da minha vida.  

E houveram outros dias tão ruins quanto, pois acordar e ter mais um dia sem a presença da minha filha é desanimador, mas vou me adaptando a esta realidade e acomodando a dor dentro de mim.

Mas tirar essas lembranças que aparecem tão vivas creio ser algo impossível, tento, procuro não pensar, mas coisas banais acabam me levando para lá, como uma tirinha satírica de internet.

No decorrer deste processo fui aprendendo que depois de uma morte assim, vivemos em um sobe e desce de emoções, em uma montanha russa de sentimentos, e nos dias que estou lá embaixo e não estou tendo um bom dia e alguém me diz: “Bom dia!”, tenho vontade de perguntar: 

“Bom dia pra quem?”

Mas aí, respiro fundo, engulo seco e respondo: 

Bom dia! 

E sigo.

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