Enigma
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20/03/2020Suicídio, prevenção e as incoerências
Desde de Março de 2017, o assunto suicídio tomou conta da minha vida e estudo o tema, e nestes anos participo de alguns projetos voltados a prevenção e a posvenção do suicídio, mas eu tenho observado algumas incoerências, principalmente na prevenção.
A começar pela seguinte frase: 90% dos Suicídios poderiam ser evitados, que tornou-se praticamente um slogan e ela é usada em todos os meios de comunicação quando o assunto é prevenção do suicídio e na Campanha do Setembro Amarelo é dito à exaustão.
Mas raramente é explicado o motivo desta afirmação e para quem perdeu alguém vítima do suicídio, ouvir essa frase causa um tremendo desconforto.
Desconforto, culpa e fracasso, pois se suicídios são fenômenos complexos, resultantes de um processo e são multifatoriais, ou seja, não dá para definir uma única causa ao fato mas que poderia ser evitado 90% dos casos, então o que está sendo feito de errado?
Nos grupos de apoio, foi explicado que essa frase foi tirada de um antigo estudo e que neste estudo, foram investigados algumas mortes por suicídio e que os pesquisadores ao conversarem com os parentes destes mortos, muitos informaram que seus entes queridos tinham traços e comportamentos compatíveis com algum transtorno mental e os estudiosos chegaram a conclusão nos casos investigados que 90% deles, tinham algum tipo de transtorno e como transtornos mentais têm tratamento, se tivessem sido tratados, os suicídios não ocorreriam.
Resolvi fazer uma uma pequena pesquisa e encontrei um material da Organização Mundial da Saúde, OMS, contendo essa afirmação de um estudo publicado em 1999 sobre Métodos de Prevenção de Suicídio em Adolescentes tirado do Journal of Clinical Psychiatry dos Estados Unidos.
Fiquei pensativa, pois se o suicídio era devido ao transtorno não diagnosticado e se a minha filha, assim como vários outros casos, tinham um diagnóstico e estavam em tratamento, entendi que os nossos casos saíram fora da curva, mas mesmo assim não me conformei.
Assisti no Programa do Bial na Rede Globo, em abril de 2018, o Psiquiatra Dr. Neury Botega esclarecendo o mal entendido sobre essa afirmação, mas como nem todos os profissionais se atualizam, a frase continua sendo repetida.
E no ano passado indo a eventos sobre a Prevenção para saber o que os profissionais da área estavam falando e quais as medidas estão sendo tomadas, já que é um assunto de saúde pública, eu ficava cada vez mais pensativa pois cada vez mais se fala da prevenção e de como e onde procurar ajuda, mas os números só crescem, principalmente entre os mais jovens.
E nos eventos que fui, praticamente todos os palestrantes usaram a frase dos 90% e não explicavam o motivo desta afirmação e para quem não sabe nada, escutar a frase, parece ser muito fácil a prevenção.
Fiquei abismada com a quantidade de pessoas que usam o copiar e colar de estudos mas que não fazem ideia do que se trata. Pessoas que tem o título de psicólogos, psiquiatras e líderes religiosos que não sabem muito sobre suicídio e saem falando, aumentando ainda mais o preconceito e o estigma.
E depois do último setembro, resolvi perguntar para alguns enlutados que conheci ao longo destes 3 anos, se seus entes queridos tinham algum diagnóstico de transtorno mental e se estavam em tratamento.
Em um grupo de 44 pessoas em luto pelo suicídio que responderam as minhas perguntas,
- Tinha algum diagnóstico de transtono mental?
- Se sim, estava em tratamento: medicamentoso, terapia ou ambos?
- Idade
75% das pessoas que se mataram tinham diagnóstico e estavam em tratamento e 25% das pessoas não tinham nenhum diagnóstico.
E destes que tinham diagnóstico, 66,7% tinham Depressão isolada ou combinada com outro tipo de transtorno como a ansiedade e bipolaridade.
57,6% faziam tratamento e usavam medicamentos prescritos por psiquiatras e faziam terapia, 33,3% usavam apenas medicamentos prescritos por psiquiatras e 9,1% faziam apenas terapia.
Ou seja 90,9% usavam medicamentos.
E das pessoas que morreram, 65,1% estavam na faixa etária dos 15 aos 29 anos.
E esclarecendo que isso não é um estudo científico é apenas uma observação.
Mas se os especialistas dizem que os suicídios poderiam ser evitados em 90% dos casos pois esses casos eram de pessoas com transtornos sem tratamento, como justificar então que em um grupo 75% tinham diagnóstico e estavam sendo tratados e que mesmo assim morreram?
Será que os profissionais da área de saúde mental estão sabendo realmente o que estão fazendo, os profissionais estão realmente preparados como dizem que estão?
E mais, dá para duvidar que esses casos tenham sido diagnosticados corretamente e que se não, consequentemente foram tratados de forma errada.
Principalmente no caso da depressão, hoje sei que há vários tipos de depressão e que as endógenas costumam responder rápido ao tratamento medicamentoso, pois é de dentro para fora o problema e que costuma ser um desequilíbrio químico, ajustou a medicação, a chance de ter uma melhora é grande já a exógena tem uma resposta bem mais lenta ao tratamento medicamentoso.
Sei que a indústria farmacêutica tem pílula para tudo, há mais farmácias hoje em dia do que poderia supor o mais otimistas dos farmacêuticos no começo dos anos 90 e que se fosse o caso de somente o uso de medicamentos, este número seria bem menor.
E levando em conta que em alguns casos podem ter havido alguns tratamentos negligenciados pelos pacientes ou que foram diagnosticados tardiamente, mesmo assim, creio que já está na hora de mudar o discurso.
E sabendo que os Suicídios são consequência de um conjunto de fatores, o fator transtorno mental não está entrando nesta conta como um peso muito maior?
Na obra O Suicídio do sociólogo francês Émile Durkheim, que foi publicada em 1897 diz que o problema do Suicídio não é apenas individual e sim um FATO SOCIAL, que é um problema da sociedade como um todo.
E nestes dias, enquanto preparava este texto, viralizou nas redes sociais uma vídeo onde uma criança com nanismo que dizia que queria morrer, que pedia para alguém o matar, pedia uma faca para a sua mãe para se matar por não suportar ser alvo de zombaria de seus colegas de escola, uma criança, sendo maltratada por outras crianças por não ter o padrão da maioria.
O fato ocorreu na Austrália, mas em nosso país não é muito diferente e serve para ilustrar o que estou querendo dizer.
O caso em si já choca, mas pior foi ler os comentários das pessoas adultas que validaram esse tipo de atitude cruel e desumana.
E o que mais espanta não são as crianças que zombam da outra criança, essas ainda não aprenderam nada, precisam de educação para saber que a dor do outro não é brincadeira, mas sim perceber quem é que educa e em que sociedade essas crianças estão vivendo.
Pois aí vem mais incoerências, se a prevenção do suicídio passa pela educação, como educar as crianças?
Sendo que uma boa parte delas são educadas por adultos que não respeitam as diferenças e acham que não existe racismo, que não existe homofobia, que machismo não é problema, que xenofobia é besteira e que bullying é uma invenção da geração de hoje que é fraca emocionalmente e que depressão é frescura.
São educadas por adultos que precisam o tempo todo estar anestesiada por drogas lícitas e ilícitas, uma sociedade compulsiva por uma felicidade artificial, consumista e que ensinam suas crianças a competir o tempo todo e não para a solidariedade e compaixão, que vivem esperando as sexta-feiras e as férias para serem felizes.
Por adultos que crêem que ter uma religião é o que basta mas que não acolhem e julgam os que sofrem por não professarem a mesma fé, que quando um suicídio acontece, culpa a falta de Deus, o inimigo, o malígno e diz que quem se mata vai para o inferno.
São esses adultos que irão educar para um mundo melhor e que no mês de setembro colocarão a fitinha amarela no peito e vão escutar o amigo que sofre mas quando o suicídio acontecer apontará a família que perdeu alguém e a culpar por tudo e se afastar.
Por adultos que não aceitam que os outros vivenciem os seus lutos e perdas significativas de forma saudável, que não permitem que chorem por seu mortos, que chorem pela perda de um amor não correspondido, a perda de um emprego, de um sonho e que obrigam os outros a engolir o choro o tempo todo e que acreditam que tristeza deve ser tratada como um enfermidade.
E as crianças crescerão em uma sociedade que minimiza tudo de importante e valoriza o que não tem importância. Onde quem não se encaixa nos padrões de beleza, riqueza e inteligência, está fora e deve ser segregado.
Por uma sociedade que fala que pessoas viciadas em álcool e outras drogas não tem vergonha e força de vontade, mas que não consegue dormir sem um remedinho.
Por uma sociedade que distribui quentinhas aos desabrigados, que fazem caridade na igreja, mas fala que quem sofre é por falta de fé ou por ter feito algo de errado no passado.
Essa sociedade será cuidada, quando precisar de ajuda médica e psicológica, por profissionais que dizem que as mães terceirizam a criação de seus filhos, que fala de suicídio mas que não obedece a cartilha da OMS sobre exposição de vítimas, e são os mesmos que dizem que não existe mais famílias e que condenam o casamento homoafetivo e que acreditam na cura gay.
Serão educadas por professores que ensinam que vivemos em uma sociedade livre mas que mandam o aluno cortar o cabelo afro e a aluna a alisar porque fica mais bonito e que despreza a cultura da periferia.
E serão cuidadas por médicos e enfermeiros que dizem que depressão é uma doença, mas quando no plantão no pronto socorro chega um caso de tentativa de suicídio, maltrata e negligencia.
Também serão protegidas por agentes de segurança que quando uma mulher é violentada, culpa até as roupas que ela usava, menos quem praticou o crime e quando um homem agride uma mulher, pergunta se ela o provocou.
Serão cuidados por políticos que são eleitos para beneficiar o povo mas que só pensam em seus pares deixando o país a beira de um colapso social.
E são esses adultos que querem que os jovens cresçam mentalmente saudáveis nesta sociedade que não consegue se perceber doente?
Penso que talvez no próximo Setembro Amarelo, deveria bater na tecla de que para evitar 90% dos suicídios é preciso educar para uma sociedade melhor, mais justa, falar da capacitação dos profissionais e com menos acesso a meios letais.
Falar que a prevenção do suicídio não é dever apenas da família, da escola, da igreja, mas que é da sociedade como um todo e para que ele seja evitado, teremos agir com coerência.
E que SUICÍDIO PODE SER PREVENIDO, mas infelizmente NEM SEMPRE pode ser EVITADO!
Durkheim, Émile. O Suicídio: Estudo de Sociologia.São Paulo: Martins, Fontes, 2000.
Material da Organização Mundial da Saúde https://www.who.int/mental_health/media/counsellors_portuguese.pdf
9 Comments
Sensacional! Obrigada!
Melhor matéria que li de uma sobrevivente! Parabéns! Fará com que reflitemos mais sobre a Prevenção do Suicídio no Brasil e no mundo!
Parabéns Terezinha, excelente texto vc continua o Máximo. Bjs
Excelente matéria, muito completa, esclarecedora e sensível.
Nós, enlutados nos sentimos agraciados quando alguém como você Terezinha, fala por nós. Muito obrigada!
Parabéns, o texto é muito esclarecedor e mostra o quão a sociedade precisa de orientações, com base em estudos fundamentados, com dados e fatos atualizados . Bjs
Esse texto está surpreendente!
Deveria ser compartilhado por todos nós, sobreviventes enlutados
Esse texto é de utilidade pública. Só quem vivencia o problema, pode compreendê-lo com tanta lucidez e sensibilidade. Parabéns.
Abraços
Brilhante o texto!!
Parabéns por tamanha coerencia e bom senso, pena q e a pura realidade …
Elisabete, do jeito que falam da prevenção parece um caminho fácil a ser seguido, mas não é. Nunca foi, por esse motivo tantos casos. Infelizmente.
Um grande e forte abraço.