a culpa sempre e da mãe
A culpa (sempre) é da mãe?
01/11/2025
a culpa sempre e da mãe
A culpa (sempre) é da mãe?
01/11/2025
O luto e a jornada do herói

O luto e a jornada do herói

Quando Marina morreu, passei a acreditar que não conseguiria ser uma pessoa funcional, depois passei a crer,  porque lia e ouvia muito,  que, com o tempo, eu aprenderia a transformar a dor em amor e por um bom período achei que seria assim.

Mas, com o passar dos anos, percebi que essa teoria não se aplicava à minha vida. Fui sentindo, na verdade, que o amor que ficou é que foi aliviando a dor. Desde então, passei a me referir ao meu processo de luto dessa forma: não é a dor que se transforma em amor, é o amor que transforma a dor.(escrevi sobre isso em 2020)  

A transformação não veio apenas com o tempo e por osmose, mas sim com ajuda externa e muito trabalho interno, minha vida havia mudado com a morte, e isso significava que eu também já não poderia ser a mesma, mas minha essência continuava. Não fiquei mais bondosa depois da morte, passei a enxergar as coisas de uma forma diferente.

Algumas vezes precisei pedir a jornalistas ou pessoas da comunicação que revisassem  alguns artigos que escreveram  como “a mãe que transformou a dor em amor” ao se referirem ao meu trabalho com grupos de apoio.

Essas expressões podem soar bonitas, mas não refletem a minha realidade e não estou julgando quem as considere assim. Pois o que faço não é uma via de mão única,  ajudo e sou ajudada, sirvo e sou servida. Por isso, não me vejo como heroína, mas como humana.

E entendo que isso muitas vezes está ligada a  chamada “jornada do herói” que tem apelo universal, pois vende redenção, força e altruísmo.

Mas a vida real é menos épica, pois tanto entre muitos enlutados quanto entre muitos profissionais que criam grupos, há sempre uma troca. Quem acolhe também é acolhido; quem escuta e doa seu tempo,  também aprende, e muito. É nesse encontro que o sentido do luto se constrói.

Não vejo isso como algo negativo ou errado,  pelo contrário. A ajuda verdadeira nasce justamente desse movimento de reciprocidade, só acho que precisa haver honestidade em reconhecer essa troca, em vez de nos colocarmos apenas no lugar de quem doa.

E não acredito que a dor possa ser algo totalmente benéfico, tanto que muitos suicídios resultam de inúmeros fatores, dentre eles a dor, o sofrimento.

Costumo usar uma metáfora do cozimento do ovo e a batata para explicar o motivo de achar que a dor pode não ser redentora. Ambos enfrentam a mesma água fervendo, mas reagem de forma oposta: a dor (a água) endurece o ovo e amolece a batata.

Assim também é com as pessoas,  cada uma reage conforme sua natureza. Algumas, maltratadas pela vida, se tornam mais duras. Outras, depois de muito sofrer, encontram na dor um impulso para aliviar a dor do outro. A dor pode transformar, mas nem sempre do mesmo modo.

E quando falo do amor como algo que alivia a dor, gosto de lembrar que amor e apego não são a mesma coisa.
Em nome do amor, muitas vezes se comete violência.

Amar alguém que se foi é manter vivo o que essa pessoa despertou em nós, sem tentar retê-la.
Por isso, quando digo que Marina só morrerá quando eu morrer, não falo de negação da morte, mas da continuidade do vínculo.

Ela vive nas minhas memórias, nas escolhas que faço em nome do amor que ficou. A presença física não existe mais, mas o amor se perpetua, e isso é diferente de não aceitar a realidade.

No meu luto, até aqui, aprendi que o caminho se faz caminhando, com amor, dor, lembrança e transformação e que viver é mais do que sobreviver.

Talvez essa seja a minha verdadeira jornada: não a do herói que vence a dor, mas a da mulher que aprende a caminhar com ela, deixando o amor guiar seus passos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *